Roberto Bitencourt da Silva
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O presente cenário político é demasiadamente desolador para as esquerdas. A correlação de forças é flagrantemente desfavorável ao campo popular-democrático.
Isso por conta de uma saliente capilaridade social de valores sintonizados com ideias neoliberais, do ponto de vista político e econômico, e conservadores, sob o ângulo da moralidade cotidiana.
Ademais, anos sucessivos de governos, naturalmente, tendem a desgastar a qualquer partido político. Escolhas adotadas para o exercício de governo podem, é claro, incrementar o desgaste.
O acentuado abandono de valores e propostas de esquerda, assim como a opção pela tradicional e antipopular transação política pelo alto, bem refletida em alianças institucionais conservadoras, sobretudo com o PMDB, marcam o período de governos do PT.
A fatura tem sido entregue ao partido. Aliados de véspera, todos pimpões, descaradamente flertam com o golpe. Aliam-se ao PSDB, empedernido adversário eleitoral do PT.
Com a eventual aplicação do golpe sobre a vontade eleitoral expressa nas urnas ano passado, não seria exagero argumentar que o horizonte potencialmente seria a emergência de um semi-Estado policial.
Um possível governo norteado por ações que avancem nas privatizações, no desmonte dos direitos sociais e na entrega do patrimônio e dos centros decisórios nacionais para o exterior, que ainda restaram do legado nacionalista popular de Getúlio/Jango.
A Constituição de 1988, dita “Cidadã”, definitivamente rasgada.
Por outro lado, na eventualidade de o país superar as pretensões golpistas, considerando o perfil das escolhas políticas petistas e da presidente Dilma Rousseff, é plausível argumentar que o cenário seria de um governo social e economicamente inerte, subserviente à agenda neoliberal dos golpistas.
Para todos os efeitos práticos, que envolvem imagens e símbolos difusos na sociedade brasileira, o PT integra o universo das esquerdas, implicando em uma generalização sobre demais agrupamentos, ideias, tradições e partidos políticos de esquerda.
Uma experiência particular leva de roldão a todos os setores das esquerdas, gostemos ou não. Com efeito, os desafios não são pequenos no momento, nem é plausível esperar que melhorem em futuro próximo, seja do ponto de vista eleitoral, seja, principalmente, sob a ótica da referencialidade política e moral para as classes trabalhadoras populares e médias.
Isso posto, cabe às esquerdas defender a Constituição, rechaçando decididamente ao escárnio do golpismo, mesmo que envolva um governo sem orientação programática popular. Com um processo de impedimento motivado por intuitos pessoais, mesquinhos, reacionários e antinacionais, a defesa do mandato da presidente interessa às esquerdas pelo exemplo a ser dado em defesa da legalidade democrático-eleitoral.
Pau que dá em Chico, dá em Francisco e a possiblidade de abertura de precedentes não é nada alvissareira. Os golpistas têm que ser denunciados. Sem tergiversação.
Contudo, olhando a médio e longo prazo, o mínimo que se pode esperar das esquerdas, partidárias ou não, é a capacidade de formação de uma frente única, aos moldes do que ocorre no Uruguai e na Venezuela.
Dispersas e fragmentadas, como há anos temos visto no Brasil, não vamos a lugar algum. Na melhor das hipóteses deparamo-nos com clubinhos sem expressão e sem visão de país.
Desse modo, um ingrediente decisivo para a constituição de uma frente ampliada das esquerdas são ações propositivas e um conjunto elementar de ideias a serem preconizadas e articuladas com o Povo Brasileiro.
Apoiado no diagnóstico das enormes lacunas apresentadas pela experiência social-liberal do PT, bem como em necessidades recentes e historicamente remotas da Nação, pode-se assinalar um eixo básico de ideias, visando superar a concentração de renda, gerar emprego, ampliar a democracia e buscar a ruptura do subdesenvolvimento e da dependência externa. Sem a pretensão de esgotar temas e problemas, destaco abaixo algumas ideias que somente à esquerda podem ser defendidas. Desafios que demandam devido equacionamento:
1. Adotar uma política seletiva para a entrada do chamado investimento externo. A aquisição de empresas, privadas e públicas, não favorece a soberania e o crescimento econômico, nem a geração de empregos. Subsídios e incentivos oficiais oferecidos às corporações multinacionais, em muitos casos, somente implicam em remessa de lucros extraídos do trabalhador e do consumidor nacional, também comprometendo o orçamento público, sem qualquer sentido social.
2. Preconizar uma política industrial. A decantada “sociedade do conhecimento”, que pretensamente consiste em um estágio socioeconômico superior, é uma falácia, como assinala o presidente equatoriano Rafael Correa. Possivelmente válida para os países centrais do capitalismo, mas não para nações como a brasileira, que detém tímido domínio técnico-cientifico e encontra-se em processo de desindustrialização e reprimarização econômica. Variável decisiva da atual crise econômica deriva precisamente em aposta no modelo primário-exportador, suscetível às oscilações do consumo e dos preços internacionais. Não é admissível ficarmos a reboque de determinações externas.
3. Com isso, se pode argumentar sobre a necessidade da reforma agrária, como iniciativa que permita não apenas assegurar justiça e direitos aos trabalhadores rurais, como também reorientar o modelo econômico brasileiro e sua respectiva inserção na divisão internacional do trabalho.
4. Defesa de uma tributação progressiva. Não é razoável, nem socialmente justo que grossa parte dos impostos seja paga pelos mais pobres e pelos setores médios. Dar ênfase aos impostos diretos sobre rendimentos, com faixa inicial de tributação bastante superior aos cerca de R$1800,00, em que hoje incide a tributação. Os ricos, parasitas e empresários têm que pagar impostos.
5. Auditoria da dívida pública. Questionamento e proposta de revisão da Lei de Responsabilidade Fiscal, senão mesmo substituição por uma Lei de Responsabilidade Social, que priorize gastos públicos orçamentários em investimentos sociais e econômicos de relevância nacional, deslocando a prevalência atual do atendimento a bancos e demais agentes rentistas, não-produtivos.
6. Rejeitar a perniciosa prática da autofagia nos movimentos sindicais, estudantis e demais organismos populares, de modo a criar condições factíveis para uma unidade das esquerdas, desde baixo.
7. Não considerar as eleições como um fim em si mesmo. A centralidade dada aos processos eleitorais afasta as esquerdas do cotidiano popular, redundando em baixo reconhecimento eleitoral e tímida legitimidade junto aos setores médios e populares da classe trabalhadora.
8. Regulação democrática da mídia. Para além do envolvimento e da eventual criação de canais de comunicação e interlocução com as classes trabalhadoras, cabe às esquerdas defender, de maneira decidida, um marco regulatório democrático para a mídia. Oligopólios e propriedades cruzadas impedem a construção de uma agenda pública em que participem todos os setores da sociedade brasileira, especialmente os sem voz e sem imagem. Há necessidade de efetivar o “direito à comunicação” para todos, um direito humano inalienável, como acentua o estudioso do tema, Venício Artur de Lima.
Em relação a alguns tópicos descritos, vale bastante a leitura da recente entrevista concedida pela economista Maria Lucia Fattorelli à revista Caros Amigos. Igualmente relevante é o livro do também economista Rafael Correa, recém-publicado pela editora Boitempo. Seguramente, tratam-se de oportunas fontes de reflexão (1).
Ademais, nesse 13 de dezembro, de fatídica memória da instalação do AI-5, golpistas, fascistas e incautos teleguiados de todos os quadrantes estarão nas ruas. Urge a união das esquerdas, olhando o presente e o futuro.
Roberto Bitencourt da Silva – historiador, cientista político e professor da Faeterj-Rio/Faetec e da SME-Rio.
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