por Renato Janine Ribeiro
No começo do século XIX, um viajante percorria as montanhas da Itália. Os moradores eram pobres e analfabetos. Mas, quando ficavam sabendo que ele era inglês, abriam um sorriso e elogiavam seu país: meio século antes, a Inglaterra havia julgado um nobre que assassinara o mordomo. De fato, em 1760 o conde Ferrers fora condenado.
Para fazer justiça, a Inglaterra reconhecia ao réu direitos impensáveis nos demais países. Não o torturavam, ele tinha direito a defesa, um júri de seus pares o julgava. Assim, quando vinha a sentença — e a lei penal era rigorosíssima, prevendo a morte para centenas de crimes — ela era considerada justa.
Os dois parágrafos acima introduzem as duas narrativas que hoje circulam sobre o processo do mensalão, assim como apontam os riscos que corre o Supremo Tribunal Federal. Primeira narrativa: vão a julgamento membros da cúpula do partido que governa o país há dez anos. Se condenados, isso indicará — aos olhos da oposição — que se terá feito justiça.
Segunda narrativa: o Supremo, pressionado por uma mídia sobretudo oposicionista, negou direitos básicos à defesa. Por isso, uma condenação será sinal de que se fez tudo, menos justiça. Ao recusar a 35 réus o julgamento pelo juiz natural, ao chegar à mesquinhez de proibir a defesa de usar o power point que facilitaria a exposição de seus argumentos, o STF pode ser visto como um órgão que vestiu a toga para matar, não para julgar.
Corre risco a imagem do Supremo Tribunal.
O pleno do Supremo julgará o chamado Mensalão |
Esse, o risco do julgamento em curso. Seja qual for o seu resultado, parte da sociedade entenderá que não se fez justiça. Pior, essa opinião será determinada por recortes políticos. Isso é grave. A sentença pode diminuir o respeito pelo Poder Judiciário. Se o Supremo não condenar a maioria dos réus, em especial Dirceu e Valério, a oposição dirá que o julgamento acabou em pizza. Mas, se condenar, a opinião favorável ao PT entenderá que os ministros julgaram politicamente, sem a coragem de seguir a verdade ou os autos.
O problema é que a oposição tornou esse um caso quase de vida ou morte. O PSDB se adaptou mal à mudança de agenda política que pôs em primeiro plano a inclusão social. Longe das eleições, a oposição acusa a Bolsa-Família de assistencialista; na campanha eleitoral, promete colocar mais dinheiro nela. Sua grande realização, a estabilidade monetária, já não é uma bandeira eleitoral; sua convicção maior, a da privatização, não traz votos novos. Daí que o mensalão se torne seu ponto maior de fé, mas tendo o defeito de ser uma crença que só convence os já convencidos.
Mais que isso. Mesmo a condenação de vários réus, caso ocorra, dificilmente prejudicará a imagem de Dilma Rousseff. Ela não associou seu destino ao deles. Faz questão de manter o governo afastado do processo. Duvido até que uma condenação perturbe o futuro do PT. Ele já pagou em 2005, quando Dirceu e Genoíno caíram do poder. Mas, nas eleições deste ano, não há um enfrentamento em regra da base governista e da oposição tradicional – digo tradicional porque, dois anos atrás, uma nova oposição surgiu, a dos verdes que deram a Marina vinte por cento dos votos, mas sumiram sem rastros: no maior colégio eleitoral do país, a cidade de São Paulo, sequer há um candidato verde a prefeito. Daí que um balanço destas eleições a partir da pergunta básica — quem venceu, governo ou oposição? — seja difícil.
Por isso, mesmo o cenário mais favorável à oposição e à classe média paulista, que se mobilizam pela condenação, apenas as reforçará em suas convicções. É improvável que as aproxime do poder ou que desestabilize o governo. E isso se terá feito a um custo nada trivial para o Supremo Tribunal.
A imagem da corte está em risco e, com ela, a do Poder Judiciário. A grande mídia mofa da defesa; os blogues de esquerda zombam da acusação. Chega a haver vozes, na oposição, contrárias ao princípio de defesa. Um leitor de jornal sintetizou perfeitamente essa crença ao reclamar: como esses homens, que violaram a lei, agora pedem a proteção da mesma lei? Não podia resumir melhor a mentalidade antidemocrática. Porque a violação da lei penal só pode ser determinada com total respeito à lei processual. Uma privação da liberdade só pode ser decretada respeitando-se os direitos humanos, a começar por dois que nos vieram dos ingleses, o devido processo legal e a presunção de inocência. Ninguém é legalmente culpado até ser condenado em processo justo. Por isso, o juiz do caso Nardoni deu à defesa tudo o que ela pediu, para depois não caber recurso. O Supremo não mostrou essa cautela.
A Inglaterra ganhou, executando o conde Ferrers “como um criminoso comum” (Linebaugh), porque ele teve toda a defesa. Condenado, pediu que lhe dessem a morte nobre, a decapitação. Seus pares, os lordes, mandaram que sofresse a morte vil, na forca de Tyburn. Pediu que o enforcassem com uma corda de seda, em vez da ordinária de cânhamo. Resposta negativa. Mas ele pôde se defender, antes disso. Se houver uma dúvida razoável a respeito, ninguém ganha. Assim, se parte razoável dos brasileiros não acreditar que a Justiça faz justiça, o custo para as instituições será alto. Esse, talvez o maior erro da oposição. Ao querer vencer a todo custo, esqueceu a lição da primeira democracia moderna: para que uma vitória seja respeitada, há primeiro que respeitar plenamente as regras do jogo. Curiosamente, quem se contenta com uma vitória modesta tem mais chances de ter o resultado acatado pelo outro lado. Mas quem transforma o processo judicial em luta política, e a luta política em guerra, perde o combate que realmente importa, o de ter o resultado respeitado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente aqui